Leia o artigo da Professora Doutora Renata Munhoz
Por Profº Dra. Renata Munhoz
Foto: Diego Maciel
Quanto mais me aprofundo nos estudos sobre a língua portuguesa, mais eu entendo que ela é uma valiosa ferramenta de conexão entre os seres humanos. Nesse contexto, uma palavra que me fascina é “mito”, devido a sua polissemia (mais de um significado para uma palavra). No sentido mais positivo, o mito é uma história heroica e sagrada que nos conecta com a beleza de nossa cultura, além de designar bem nossos ídolos, como Pelé, um mito do futebol. Por outro lado, um mito pode ser uma ideia falsa, um estereótipo que pode aprisionar. Foi justamente para combater essa segunda face do mito que eu decidi criar meu perfil no Instagram, o @profarenatamunhoz, com o objetivo de desmistificar conceitos divulgados indiscriminadamente por várias celebridades nas redes sociais e, dessa maneira, lutar contra a injustiça social.
Afinal, por que ainda insistimos em acreditar no mito do preconceito linguístico? Em todas as regiões e classes sociais do Brasil, existe a crença de que “não sabemos português”, mesmo sendo nosso idioma materno. Eu, como professora, não aceito chamar os desvios gramaticais de “erro”. Eles são apenas variações, e nunca dei risada de quando meus alunos (ou qualquer pessoa) fala ou escreve algo fora da norma-padrão. Essa é a minha ética profissional como educadora: não me coloco em uma posição de superioridade para menosprezar quem teve pouca escolaridade. Para mim, isso é inadmissível. Creio que essa seja a principal mensagem a ser transmitida a todos os educadores em formação no Brasil.
O pesquisador Marcos Bagno, da área da Sociolinguística, provou que o preconceito e a exclusão social são intrínsecos à forma como julgamos a linguagem. Agimos com preconceito linguístico quando, por exemplo, pensamos que uma pessoa com pouca escolaridade não merece uma boa oportunidade de trabalho apenas por ter transgressões gramaticais na sua fala. Exemplo disso foi a demissão de gerente de projetos de uma empresa onde eu ministro treinamentos, apenas porque ele concordou equivocadamente no verbo na frase: “Nós entrega o produto no prazo.” Tivesse ele dito “Nós entregaremos…” ou até mesmo de maneira informal “A gente entregará…” seu emprego estaria mantido, mesmo que talvez ele atrasasse ou até mesmo não cumprisse a entrega… Caso tivesse uma posição mais estratégica na política da empresa, a ocorrência certamente seria relevada pelos pares e clientes. Em alguns contextos, a forma se sobrepõe ao conteúdo, principalmente quando estão em jogo rivalidades pessoais.
Com isso, quero provar, sim, a importância de se saber corretamente a gramática normativa: tanto para manter a clareza da comunicação quanto para garantir a credibilidade de nosso profissionalismo. É para isso que trabalho todos os dias. Contudo, o que gosto de deixar claro é que o purismo linguístico às vezes é o mero disfarce para o real preconceito social, contra pessoas já em situação de vulnerabilidade. Esse preconceito pode extrapolar as fronteiras da língua para perpetuar o já existente distanciamento social. Prova disso é que ninguém corrigia o CEO de uma importante empresa que escrevia e falava a forma verbal “seje”, que não existe na língua portuguesa… Você o corrigiria se fosse seu chefe?
Em seu livro “A língua de Eulália“, Bagno desconstrói a ideia da “língua homogênea”, mostrando que no Brasil há muitas variedades linguísticas. Ele nos apresenta Eulália, que fala o português não-padrão, e nos convida a entender que todas as variantes devem ser respeitadas, porque o objetivo final da língua — a comunicação — é alcançado. Por isso, eu indico essa obra a quem deseje compreender os motivos históricos e pragmáticos dos chamados “erros” de português.
Outro de seus livros, “Preconceito Linguístico: o que é, como se faz“, já foi publicado mais de cinquenta vezes! Nele, Bagno desconstrói quatro mitos que geram esse tipo de preconceito:
● Mito 1: “A Língua Portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade.” Não existe uma língua homogênea, mas sim uma diversidade rica devido à nossa imensa área geográfica e heterogeneidade cultural.
● Mito 2: “O brasileiro não sabe Português, porque só em Portugal se fala bem.” A nossa língua é o Português do Brasil (PB), com suas próprias particularidades históricas e culturais.
● Mito 3: “Português é muito difícil.” Todo falante nativo conhece sua língua e a usa, a apropriação das regras gramaticais acontece pelo uso. A gramática é um estudo posterior.
● Mito 4: “As pessoas sem instrução falam tudo errado.” A estigmatização das variantes linguísticas é mais social do que intelectual. O importante é comunicar-se, adaptando-se à situação de uso da língua, seja de forma formal ou informal.
Diante desses mitos, eu reforço que devemos valorizar as nossas oportunidades de estudo e romper com a marginalização linguística, que ainda hoje restringe o acesso de muitas pessoas a documentos e oportunidades essenciais. É nossa responsabilidade, como cidadãos, valorizar a nossa língua em sua totalidade.
Acredito que, ao desconstruirmos esses mitos, nós nos tornamos mais do que meros usuários da língua: nos tornamos agentes de mudança, prontos para romper com preconceitos que ainda têm força para subjugar pessoas. A língua, afinal, não é uma ferramenta de exclusão, mas sim o mais belo e poderoso elo de conexão.
Diante disso, quero ser a voz para aqueles que não tiveram a oportunidade de estudar e, por isso, sentem vergonha de se comunicar. Acredito que a língua não pode ser um obstáculo, mas sim uma ponte. Creio que o saber não é medido pela gramática perfeita, mas pela capacidade de se expressar com clareza e confiança. Com meu trabalho, busco encorajar essas pessoas a se libertarem do medo, a valorizarem sua própria história e a usarem a palavra como uma ferramenta de empoderamento e transformação.